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CONSTRUINDO A IDENTIDADE: SOBRE O DESFRALDAR

Obra de Cândido Portinari, Meninos Brincando, 1955

O desenvolvimento psicossexual de uma criança é descrito pelas fases oral, anal e genital, dentro da literatura psicanalítica (Freud, Reich, Abrahm, etc.). Grosso modo, isto quer dizer que a boca, o ânus e os órgãos genitais são vias de prazer que estão ligadas ao funcionamento orgânico primordial, que é, aos poucos, adquirido pelo bebê e posteriormente pela criança.

O animal da espécie humana não nasce pronto. Demora até que ele possa se alimentar sozinho, fazer suas necessidades, andar, correr, etc. até, então, sua sobrevivência está atrelada a um cuidador, num primeiro momento, que geralmente, é a mãe. Uma vez que sua dependência está atrelada a outro ser humano, a forma com a qual este outro lidará com as necessidades primárias do bebê influenciará seu desenvolvimento biológico, psicológico e social.

O bebê nasce, por exemplo, dependente da necessidade de que alguém o alimente. Alimentar-se relaciona não só aspectos ligados estritamente à sobrevivência, mas ao prazer que, neste caso, dá-se pela boca, via oral. Na verdade, é uma coisa só: prazer, sobrevivência. A forma como o bebê será alimentado também interfere na qualidade deste prazer e, consequentemente, na forma como ele lidará com o seu corpo e com o mundo.

Conforme os meses vão passando, o desenvolvimento começa a relacionar outras partes do corpo. Num primeiro momento, por exemplo, o bebê não tem controle de seus órgãos genitais e de seu esfíncter, o xixi e as fezes não podem ser “controlados”. Aos poucos, a criança começa a adquirir este controle e o prazer passa a ser ligado à região do ânus. E novamente o trato do adulto ou responsável por ela, nesta nova fase que se inicia, afetará a forma como ela irá lidar com seu corpo. É como se a fisiologia fosse modelada por essa equação emocional complexa que permeia o desenvolvimento envolto por cuidados. Esses cuidados ajudam ou atrapalham a relação do ser com seu próprio corpo, com a construção de seu sentimento de identidade, de continuidade, de pertença e, consequentemente, sua relação com o mundo. Um corpo afeta o outro.

Essa imbrincada relação do corpo humano em dependência com outro corpo afeta a estrutura emocional e biológica do organismo que se desenvolve. É por meio deste outro corpo que aspectos essenciais da cultura serão impregnados e transmitidos ao ser em desenvolvimento. Uma das questões mais delicadas em nossas sociedades é o trato com a toillet, geralmente ligada à sujeira, à vergonha… como se não fosse algo natural de todos os seres vivos. Qualquer organismo capaz de transformar um alimento em energia produz um “dejeto”.

Mas essa noção da “nojeira” de nossas excreções tem uma razão de ser dentro do processo civilizatório. A sociedade europeia, por exemplo, passou por um processo de desenvolvimento muito rápido e antes mesmo que estivessem disponíveis as facilidades sanitárias que hoje existem. A falta desta estrutura sanitária agravou os riscos em relação à contaminação, comprometendo a saúde dos homens por muito tempo. Há relatos de que os dejetos eram despejados pelas janelas dos antigos casarões, permanecendo na rua, aqui, no Brasil, por exemplo. Foi, então, preciso que se criasse uma cultura de higiene para que as formas de lidar fossem modificadas.

Assim, o treino exagerado e prematuro da toillet acabou sendo necessário de alguma forma para a sobrevivência. Porém, de acordo com Lowen, o exagero em relação à limpeza por parte dos europeus – que acabou ficando como herança cultural para nós – acaba tolhendo parte da espontaneidade e a alegria das crianças pequenininhas. Isto por que a excessiva limpeza, o asseio feito de forma muito mecânica (o trocar fraldas com muita rapidez e de forma automática), que leva ao trato compulsivo com as fezes do bebê, acaba inibindo sua espontaneidade com seu próprio corpo. Um desses manuseios referentes à limpeza é a pressa em tirar as fraldas do bebê antes mesmo que ele esteja pronto para tanto. Muitas vezes, essas experiências acabam cooperando para que ocorram algumas dificuldades biopsíquicas no futuro adulto que vão desde de um funcionamento intestinal mais difícil até questões comportamentais.

Claro que a vida civilizada requer que todas as crianças tenham um treino da toillet e, logicamente, os adultos dão relativa atenção às funções excretoras. De tal forma isso ocorre que todas as questões do asseio infantil ficam por conta da maneira como adulto as encara.

A maioria das crianças que crescem em ambientes civilizados terá algum tipo de mau funcionamento do ânus, conforme comprovam as experiências clínicas de Reich e Lowen. Pois, a tentativa por parte do infante de desenvolver o controle prematuro do esfíncter resulta em espasmos e tensões dos músculos glúteos e músculos da coxa. Uma vez que isso se configura, surgem bloqueios energéticos e consequentemente há uma sobrecarga na região que cria um erotismo anal que pode vir a ser patológico.

A inervação motora do músculo esfincteriano anal externo se mieliniza muito mais tarde, de modo que não é possível ter o seu controle total no início da vida. O corpo sente essa exigência como uma agressão: as crianças contraem as nádegas, erguem o assoalho pélvico e contraem a parte posterior das coxas para impedirem seu movimento. Na medida em que essa se torna uma condição dolorosa, desenvolve-se um conflito sério relacionado às tendências destrutivas e à submissão.

As tendências destrutivas encontradas numa criança vêm exatamente das interferências feitas nas necessidades e ritmos naturais, mas isso pode e deve ser evitado. Para saber o melhor momento de tirar as fraldas do bebê, por exemplo, vale perceber como está o seu equilíbrio corporal, ela já consegue subir as escadas com alguma segurança, por exemplo? Se ela já estiver pronta para subir e descer as escadas, o cuidador já pode pensar em começar o treino de toillet.

Será que não poderíamos deixar a criança usar fraldas até que ela possa compreender a natureza dessas funções e expresse numa linguagem simples e clara suas necessidades? Será mesmo que deveríamos agir tão prontamente a fim de nos livrarmos desse encargo? A naturalidade e a paciência podem nos apontar caminhos mais naturais de lidar com esta importante fase.

REFERÊNCIAS
LOWEN, A.. O corpo em terapia – a abordagem bioenergética. Tradução de Maria Sílvia Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1977.
REICH, W. Análise do Caráter. Tradução de Maria da Glória Novak. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
______. A função do orgasmo. 4.ed. Tradução de Maria da Glória Novak. São Paulo: Brasiliense, 1978.

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