Estrangeira
Susana Z Scotton
A obra Americanah (2013) da aclamada autora nigeriana erradicada nos EUA, Chimamanda Ngozi Adichie, pode nos valer algumas reflexões sobre o ser estrangeiro e como esse lugar pode nos “tomar de assalto”, pois, ao contrário do que pode parecer, nos é ‘estranhamente familiar’. Longe de esgotar a discussão, nossos esforços aqui se voltam para o simples, o trivial da vida, mas que nos roubam de nós mesmos: sentir-se à vontade e confortável na própria pele ‘estando onde estiver’.
A história da narrativa traz uma moça nigeriana que embarca para os EUA para fazer / terminar seus estudos universitários, inviabilizados pelas situações políticas e sociais complicadíssimas pelas quais a Nigéria atravessa. Esta moça deixa para trás o namorado de longa data, o pai e a mãe. Distancia-se de sua identidade, que também é moldada pelas referências de seu país. Ir ao estrangeiro dá a ela a noção do estranho, do estranhamento do outro e de si mesma. A perda do lugar de origem a coloca num “não-lugar” a priori sem qualquer possibilidade de encaixe. Confronta-se com todo tipo de dificuldade: étnica, financeira, sexual, linguística. Esse “lugar estrangeiro” pode ser equiparado aos sete primeiros dias da fecundação no útero (a pessoa enquanto este ser primitivo e o país enquanto útero) – momento ainda sem aderência ao corpo materno, uma espécie de ‘momento psicótico’, que dependerá, dentre outros fatores, da forma como este zigoto irá aderir ao útero. Isso porque a única percepção que se tem é especificamente sensorial até por não se ter ainda contato com o continente (útero). Não há ainda um contato com a realidade.
Quando se está num local totalmente novo, sem referências, a sensação “familiar” é desse estágio sem ancoragem, que restou no inconsciente. A adaptação vem exatamente disso que Freud fala: o estranho familiar. O estranho só nos causa estranhamento, porque ele nos é muito familiar e dependerá da forma como cada um vivenciou esse processo. Não é à toa que, na mudança espacial, muita gente se perde de si e o que era para ser uma experiência interessante passa a ser um grande sofrimento.
A personagem da literatura só começa a se encaixar quando decide que não disfarçará mais o seu “sotaque” nigeriano. A língua materna passa a ser aceita por ela, marcando sua diferença étnica, cultural. É quando ela admite o percurso, o deslocamento que causa o estranhamento e a diferença, que ela pode se sentir familiar. Um familiar “consigo mesmo”, familiar em seu próprio corpo, seu território, e que carrega marcas profundas de seu país de origem. Sempre levaremos o lugar onde nascemos como registro único e intransponível. É possível mudar de país, de cultura, mas se faz vital reconhecer sua pátria, seu primeiro lugar de ancoragem.
A personagem da literatura volta para casa, para seu país, aliviada de que ainda algo poderia se recompor; de que ela poderia juntar seus cacos e se refazer. Nem sempre isso é possível, sabemos. Aceitar a “incompletude” e topar a vertigem do estranhamento poderiam nos render uma maturidade extra nos diferentes percursos ao estranho ao longo da vida, um saber a mais e, contentes, finalmente, em estar na própria pele.