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“Faixa de Gaza” e o espaço transicional da clínica: entre conflitos e esperanças

Por Susana Zaniolo Scotton

Gostaria de falar sobre a transitoriedade presente na clínica. A clínica é em si esse lugar transitório; lugar esse que não é a realidade e tampouco um delírio. Winnicot fala sobre esse espaço de transição como o lugar de atuação do psicólogo; local de passagem em que o material, o conteúdo discutido, não é corriqueiro, diferente de uma conversa com os amigos em qualquer lugar.
O paciente – ou o cliente – também não se remete à realidade ou ao delírio, parte, antes, de uma consciência intermediária, que compreende o passado, o futuro, as ideias, os sonhos e as ilusões. O campo do pensamento sofre interferências da neurose e é por ela confundido; assim, a clínica – a relação estabelecida nesse espaço – é o lugar onde o conflito é exposto.
O conflito abarca diferentes dimensões da vida psíquica, como a confusão, o sofrimento, que “brigam” pela ocupação de um mesmo espaço, interagindo num mesmo tempo, dentro do ser, e se confundem com a realidade. Isto é, do conflito emergem diferentes materiais que tentam se manifestar como “verdades”, mas, que, na maioria das vezes, trata-se de uma confusão.
A faixa de Gaza é também um lugar de transição, um território disputado por grupos que reivindicam cada um para si direitos de ocupação. A situação é crítica, caótica e mortal. Quem seriam os verdadeiros donos da terra? Por que não é possível conviver num mesmo espaço? Claro que essa questão remonta particularidades culturais que não nos cabe aqui comentar. Mas a imagem de um lugar de transição e conflito nos vale uma boa metáfora quando nos referimos ao que ocorre na clínica. O assunto é sério e envolve especificidades. Não dá para ver a “guerra” instalada na faixa de Gaza apenas por uma perspectiva, não é possível olhar as relações estabelecidas na clínica com ingenuidade, é preciso saber a dimensão do que se fala.
O que se pronuncia ali (clínica) é permeado e camuflado por culpas, confusões, fantasmas gerados por mecanismos que se manifestam como uma realidade camuflada de verdade. Há uma dualidade entre o passado insuportável e o presente que, nesse conflito reeditado, apresenta-se como o mais forte e que, consequentemente, prevalece.
Alguns conflitos nos dividem entre desejos opostos, entre o querer e não querer, por exemplo, e buscam o mesmo espaço e momento de manifestação.
A clínica é um lugar poético, mítico e transformador, onde ocorrem os ritos de evolução, de amadurecimento; um lugar onde a esperança se renova em direção a uma história que harmoniza conflitos por meio da reelaboração de desejos e vínculos, responsáveis pela qualidade dos relacionamentos.
Mas também é antes um lugar de desafio, uma vez que o investimento afetivo deve ser sempre dirigido aos sentimentos e não ao pensamento. Nesse sentido, o lugar do psicoterapeuta deve estar entre o pensamento e a emoção, um lugar de conflito se o corpo e suas sensações não forem consultados. Quando consultamos os nossos pensamentos corremos o risco de delirar, porém quando consultamos nossas emoções e nossas sensações, utilizamos o pensamento a serviço da emoção.
Em Gaza se superpõem passado e presente, num conflito de lideranças muitas vezes caótico, num pequeno espaço territorial onde há, dentre outros fatores, escassez de água.  Depois de tanto tempo e tanto conflito como saber “quem” está certo? Os direitos em relação ao território estariam calcados numa situação passada, que remonta as origens ou na situação posterior de ocupação?
No espaço transicional instalado na clínica também há conflitos de liderança: de um lado o trauma que se apresenta como novidade / reeditado e, do outro, a nova situação, o fato. Isso por que a memória é mnêmica: os fatos se misturam passado e presente se aproximam e as sensações e sentimentos se embotam.
Segundo Freud (1996), o funcionamento da memória se dá através de conteúdos psíquicos, numa multiplicidade de constelações psicológicas. Por isso, não supõe só uma cadeia de eventos concatenados em nossa lembrança; supõe também o esquecimento de determinados eventos e recordações que poderiam ser consideradas fúteis, mas que, na verdade, aparecem como lembranças encobridoras de eventos de extrema importância para nós. Para Freud, o tempo e a memória só podem existir no plural. O tempo pressupõe várias temporalidades nas instâncias psíquicas. E a memória, de modo algum, é algo simples, e, sim, múltiplo e de funcionamento altamente complexo.
De qualquer forma, o resultado disso é esse conflito de lideranças que podem enlouquecer a “leitura” de si. O ser humano se comunica por meio da linguagem e dela irrompe o conflito de uma leitura do passado que se estabelece como uma realidade da qual o ser não pode se livrar.
O grande desafio que permeia esse espaço transicional de conflitos é manter essas águas separadas e conseguir atravessar… é como se a pessoa tivesse que ter uma fé tão grande que tem de afastar as águas para não ser engolido e se perder nessa maré de emoções que vem de todos os lados e ameaçam aquilo que há de mais profundo e caro. Eis como a clínica se apresenta: é um rito; é um corredor de passagem e a ideia é conseguir existir e se firmar nesse campo, nesse corredor, nessa faixa de Gaza, nesse corredor vermelho.
Para além da faixa de Gaza, onde o conflito se põe como barreira ao crescimento do território, a clínica é espaço de construção. Uma construção dentro de um espaço transicional, que não nega o conflito. Em Gaza, a história e a memória se perdem meio a interesses de grupos de lideranças suspeitas. No espaço da clínica, a memória e o tempo reconstroem percursos – é possível até mudar o passado a partir de uma nova leitura dos acontecimentos – quando devidamente trabalhados, em sua verdade emocional. Se dentro da clínica isso se torna possível, há lugar também para a esperança, que figura como pano de fundo, para além da confusão instalada pela neurose. Dentro do conflito, um lugar onde se respira mais aliviado, em que as lideranças se acalmam e podem coexistir.

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